A corretora de imóveis e palestrante carioca Josiane Cristina Oliveira Xavier, 47 anos, já na infância sentiu na pele o que era ser desrespeitada e agredida por um homem. Aos 11 anos, foi abusada pelo seu irmão mais velho dentro de casa. Depois, ao longo da sua vida, se casou com três maridos que a agrediram e tentaram lhe matar por diversas vezes. Hoje, ela faz parte de um projeto que empodera mulheres do Brasil inteiro e ajuda outras vítimas de violência doméstica
“Até os meus 8 anos, morei em uma comunidade do Rio de Janeiro com meus pais e mais 11 irmãos. Passávamos muita fome e necessidade. Era uma situação tão precária que as chuvas sempre acabavam com o pouco que tínhamos. Aos 9, para ajudar no sustento da casa, resolvi bater nas portas das pessoas pela manhã e perguntar se queriam que eu comprasse pão para elas. As moedas que sobravam já dava pra comprar pão para os meus irmãos. Íamos também nas feiras livres atrás da xepa pegar as frutas e os legumes que sobravam. A rotina era assim: eu estudava à tarde e de manhã fazia essa ronda, sempre com meu irmão caçula, de quem eu tomava conta, pendurado na minha cintura. Minha mãe saía cedo pra trabalhar em casa de família e voltava quando já estávamos dormindo. Assim, quase não a víamos.
Um dia, meu irmão mais velho, filho do primeiro casamento da minha mãe, veio morar conosco. Certo dia, vi que ele estava me olhando pela fresta da porta enquanto eu tomava banho. Me apavorei, mas fiquei na minha, calada. Pensava que as pessoas podiam não acreditar em mim, eu era só uma criança.
Todas as noites, meu pai trazia um copo de leite na cama para cada filho e, numa dessas vezes, notei que esse meu irmão colocou algo no meu. Eu tinha só 11 anos e ele, 26. Dormi profundamente e quando acordei estava com a calça e calcinha rasgadas e cheias de sangue. Levantei apavorada, chorei muito, mas permaneci quieta. Isso passou a acontecer repetidamente e eu sempre sofrendo calada. Até que tomei coragem e falei com minha mãe. Ela não acreditou em mim, disse que era coisa da minha cabeça e até me bateu. Depois me levou ao psiquiatra. Fiquei tão sem chão, que peguei escondido uns remédios do meu pai e tentei o suicídio, aos 12 anos. Desmaiei e fui levada para o hospital por uma vizinha. Minha mãe não queria que meu pai soubesse de nada, pois certamente mataria o meu irmão abusador. Quando voltei para casa, contei o que havia acontecido para o meu irmão mais novo e traçamos um plano. Fui dormir no quarto dos meninos e ele dormiu na sala. Quando meu irmão mais velho foi mexer comigo, encontrou meu irmão embaixo das cobertas. Eles saíram no tapa e minha mãe ouviu tudo. O abusador fugiu e passamos anos sem saber onde ele estava. Uma vizinha que soube de tudo contou para o meu pai, que chorou por dias seguidos. Após uma semana, ele teve um AVC e passou oito anos vegetando em cima de uma cama até falecer.
Depois do trauma de ser abusada pelo meu irmão, passei a andar só de calças compridas e usava o cabelo bem curtinho. Tinha horror de meninos e de tudo que me remetesse ao sexo masculino. Já na adolescência, aos 14 anos, conheci um rapaz na escola que dizia que um dia iria se casar comigo. Dois anos depois, ele foi até a minha casa e perguntou a minha mãe se podíamos namorar. Em 1989, aos 17 anos, me casei na igreja de véu e grinalda.
Quatro anos depois, em 1993, tive meu primeiro filho, Gabriel. Ele ficou internado durante seus oito primeiros meses, mas não apresentou sequelas. Anos depois, fui mãe de mais três crianças. Jessica, que viveu por apenas 19 horas e morreu ainda no hospital; Maria Aparecida, que viveu somente quatro dias; e Samuel, que também morreu com oito dias de vida. Os três nasceram com deficiências em alguns dos órgãos. Descobri então que tenho uma doença que faz com que o cordão umbilical fique obstruído durante a gravidez e, por consequência, afetou a saúde das crianças.
Durante a gestação do Samuel, já com 11 anos de casada, descobri a traição do meu marido com a minha vizinha e minha melhor amiga. E eu ainda tomava conta dos filhos dela enquanto ela saia para, provavelmente, encontrá-lo. Com a revelação da dupla traição, peguei Gabriel e saí de casa só com a roupa do corpo. Fiquei um ano sozinha e, um dia, estava descendo do ônibus na volta do trabalho e conheci aquele que seria o pai da minha filha caçula, Nycolle, que hoje está com 19 anos. Ficamos juntos por três anos, até descobrir ele tinha uma outra mulher.
Minha filha nasceu de sete meses, mas conseguiu sobreviver. Dois meses depois, pedi a separação. Ele me deu uma surra e ainda pegou uma faca para tentar me matar. Só parou porque lhe disse, já toda ensanguentada, que ficaria com ele. Assim que ele saiu, fui até a delegacia mais próxima e o denunciei. Imediatamente, foi um carro de polícia buscá-lo na minha casa. Ele não ficou preso porque pagou fiança para sair, mas nunca mais encostou a mão em mim. Sim, porque não tinha sido a primeira vez. As violências por parte dele foram inúmeras. Desde cortes no meu corpo com faca, passando por muitos puxões de cabelo e tapas na cara na frente dos outros. Se eu tivesse com alguém falando no celular e ele não conhecesse, quebrava meu aparelho na hora. Era um ciclo que se repetia, eu o denunciava, ele pagava fiança e logo o soltavam. Aí ele quebrava a minha janela ou a porta de casa e entrava lá como se nada tivesse acontecido. Até que consegui me separar.
Quatro anos depois, conheci um outro homem que, no início, fazia de tudo por mim. Depois de dois anos de casada, porém, além de descobrir que ele usava drogas, se tornou extremamente agressivo e tentou me matar oito vezes. Em uma dessas tentativas, eu estava dormindo e ele me deu uma martelada na cabeça. Até hoje tenho uma marca profunda no meio da testa. Foram oito denúncias até ele ser finalmente preso e enquadrado na Maria da Penha, lei que tem salvado muitas mulheres do feminicídio. Depois, nunca mais o vi.
Após tantos traumas, resolvi ficar só. Entrei para uma igreja evangélica perto de casa, onde, no ano passado, conheci outro homem que logo virou pastor. Nos casamos e tudo parecia bem entre nós. Até que um dia ele foi receber um pagamento e simplesmente sumiu. Fui à Delegacia de Paradeiros, espalhei sua foto por tudo quanto é canto, pela internet… Fiquei superpreocupada, achava que tinha acontecido alguma coisa grave com ele. Depois de três dias, ele reapareceu na casa do irmão e me ligou para ir até lá. Me contou então que era dependente químico. Ainda fiz de tudo para ajudá-lo, mas ele só piorou.
Nessa época, eu já fazia parte do projeto Empoderadas aqui no Rio de Janeiro, comandado pela Érica Paes, lutadora de MMA. Um projeto lindo, que conheci há sete meses e que orienta e ensina mulheres a se protegerem de possíveis agressores. Quando contei minha história, imediatamente fui convidada para estar ao lado dela nos polos onde o projeto atua, dando palestras. Érica me ajudou e enxergar as agressões verbais e psicológicas que vinha sofrendo com este último marido. E eu achando que agressão era só a física.
Teve uma vez que, ainda casados, eu estava explodindo de dor de cabeça e me recusei a fazer sexo com ele. Falso moralista, ele abriu a bíblia e falou que eu era mulher dele e que, por isso, ele fazia o que quisesse comigo e na hora em que determinasse. Tomei um remédio e apaguei. No dia seguinte ele acordou e me disse, com a maior tranquilidade, que havia me estuprado enquanto eu dormia.
Fomos casados por um ano e um mês, até que nos separamos de vez. Desde então, minha vida se tornou um inferno. Tenho medida protetiva, mas ainda recebo mensagens ameaçadoras, tentando sempre me intimidar. Muitas vezes, chego em casa escoltada pelo carro de polícia da patrulha Maria da Penha, que também me acompanha nas audiências.
Atualmente, coordeno cursos da área da beleza nas comunidades para mulheres que já foram agredidas ou que ainda se encontram nessa situação. Dou palestras lá e também tento ajudar como posso, contando a minha experiência de vida e as alertando sobre tudo que passei com esses agressores. Mês passado, fui escolhida a mulher do ano de 2019. Em uma cerimônia, recebi a medalha Chiquinha Gonzaga pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro pelo trabalho de conscientização e prevenção que tenho feito com essas mulheres agredidas. É uma emoção ver como consegui transformar minha tragédia na salvação de muitas mulheres, e uma luta que nunca vai deixar de ser minha.”